Comentário do Prof. Antônio Joaquim Severino sobre a obra "Filosofia da Libertação" de Euclides Mance

Publicado em: 17 de dezembro de 2022 Categorias: Destaque

O Prof. Antônio Joaquim Severino nos presenteou com um comentário sobre a obra do Prof. Mance. Abaixo, apresentamos o texto.

Na virada do séc. XX para o séc. XXI, e do segundo para o terceiro milênio, a América Latina e o Brasil completaram seus 500 anos de existência, inaugurados e realizados sob a condição originária de colônias de países europeus, seus conquistadores. Processo colonizador atravessado por todo um amplo espectro de formas de opressão dos povos nativos do continente, que começaram com o arbitrário decreto de que só agora esses povos começariam sua história e continuaram com a desqualificação, descarte, marginalização e silenciamento, quando não pura e simples destruição, de suas culturas, sob um doloroso epistemicídio que acompanhou cruéis genocídios. Esse processo colonizador, ainda que mitigado por concessões superficiais ao longo dos últimos tempos, deixou marcas profundas que podemos expressar pela categoria de colonialidade, ora em construção, categoria mediante a qual se quer traduzir o registro de opressão e de dominação que ainda sobrevivem em todos os setores da vida das populações dessas sociedades, em que pese o alegado fim do colonialismo jurídico-administrativo: colonialidade do ser, do saber, do sentir e do poder. Relações de dominação, gestadas no colonialismo, se fazem ainda presentes, em plena atualidade, e que nem precisam ser provadas com documentação, já que todos a sentimos na própria pele.

Mas no desdobramento dialético da historicidade, por mais lentamente que ele ocorra, nesta virada de séculos e de milênios, uma tomada de consciência dessa condição de colonialidade começou a ganhar força, levando muitas pessoas e grupos a não só explicitar e denunciar essa condição, mas também a lutar pela sua superação, reclamando o direito universal de uma vida melhor para todos. Coloca-se, então, o conhecimento a serviço da emancipação humana, já que esse é seu papel intrínseco e fundamental. Ciência e filosofia só aí encontram sua legitimidade e por isso são chamadas a se reequacionar, indo além de seus exercícios formais, comprometendo-se radicalmente com essa demanda de emancipação.

É nesta perspectiva que vejo a própria trajetória de Euclides Mance bem como o sentido desta sua portentosa obra, “Filosofia da libertação: histórico, vertentes, críticas e perspectivas”, cujo lançamento temos a grande alegria de saudar e comemorar. Eis aqui uma obra bem representativa desse olhar decolonizante e emancipador que se espera também do conhecimento filosófico. Trabalho intelectual de grande monta, apresenta o resultado do competente, criativo e crítico envolvimento do autor com uma filosofia engajada, enraizada, que sempre entendeu compromissada com essa finalidade de libertação, desde seus contatos iniciais com ela. Sou testemunha pessoal do surgir dessa vocação, pois conheci Euclides Mance nas origens do IFIL quando fiquei tocado por vê-lo totalmente engajado não só com o cultivo teórico de uma possível perspectiva paradigmática, mas também com a impregnação que esse modo de pensar deveria ter com o modo de produção da existência material dos humanos. Impactou-me muito a simultânea e integrada dedicação do autor a um projeto de implementação de atividades de criação de redes colaborativas solidárias como alternativas para a constituição de modos de produção, apropriação e consumo, de sistemas autogestionários, alternativos aos modelos capitalistas e que fossem ainda ecológicos e solidários, no âmbito da produção econômica da vida. Tratava-se de uma união original da filosofia com a economia solidária, perspectiva rara, senão ausente de nossa tradição filosófica nacional. Deve nos gratificar saber, pelo depoimento do próprio autor, que suas propostas de gestão solidária de atividades econômicas tenham contribuído exitosamente para diversas experiências históricas, realizadas em várias comunidades, mundo afora, como exemplos de ações concretas decolonizantes, expressando práticas de uma economia da libertação que o autor, com pioneira originalidade, vê intimamente articulada à filosofia da libertação.

Vejo essa obra, fruto de profunda e rigorosa investigação, como uma valiosa síntese de todos os investimentos teóricos já realizados em todo o mundo, representando assim um verdadeiro estado da arte das abordagens filosóficas, sociológicas, psicológicas, políticas, pedagógicas, teológicas e econômicas, mediante uma qualificada revisão crítica da literatura clássica e contemporânea sobre o sentido da emancipação humana no contexto histórico e social dos dias atuais. Vejo-a também como uma imprescindível fonte para nos fornecer, como o próprio autor deseja, elementos teórico-práticos que contribuam para o aprofundamento da reflexão sobre a práxis da libertação, particularmente pelos segmentos sociais mais oprimidos, despertando inquietude investigativa, crítica e propositiva, mediante subsídios filosóficos para o avanço das lutas de libertação em todas as partes do mundo em que ainda se fazem presentes opressão e barbárie.

Certamente não me cabe aqui e agora, destacar e detalhar todos os temas abordados no livro, organicamente articulados sob o amplo universo categorial de uma concepção da libertação humana, que os leitores terão oportunidade de seguir pessoalmente quando de sua leitura, mas tão somente testemunhar sua pertinência, relevância e consistente trama de sua construção. E, de modo muito especial, sua exemplaridade na prática de um pensar filosófico compromissado com a libertação.

Sem dúvida, a obra “Filosofia da libertação: histórico, vertentes, críticas e perspectivas” de Euclides Mance fornece um roteiro seguro para que a cultura latino-americana possa ativar e seguir com vistas a alcançar sua emancipação. Está destinado a tornar-se referência indispensável para a filosofia e para a educação, no enfrentamento dos problemas teóricos e práticos que continuam a desafiá-las.

A filosofia da libertação, mais que um paradigma alternativo no universo da filosofia, é a proposta de uma mudança radical do pensamento de parte dos sujeitos e das culturas que integram sociedades constituídas por processos de colonização. O que está em pauta, nessa proposta, é a busca de autonomia e de emancipação dos seres humanos em relação a todos os aspectos e dimensões que tecem sua condição de dominados e oprimidos. Na esfera da individualidade, vivendo bem, em convivência com os outros, em instituições justas numa sociedade efetivamente democrática. E isso envolve a tomada de consciência dessa condição, a partir da explicitação e do questionamento de sua decorrência do processo colonizador, no nosso caso, europeu, com sua realização e repercussão ao longo dos últimos 500 anos.

Prof. Dr. Antônio Joaquim Severino


Sobre a EAB Editora

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Sobre Euclides Mance

Euclides Mance é um dos principais teóricos da filosofia da libertação na América Latina. Sua elaboração nesta área principia na década de 1980 e, ao longo dos anos, produziu categorias filosóficas, como “bem-viver”, e estratégicas, como “rede solidária”, largamente adotadas na práxis social e política de movimentos de libertação popular na América Latina, introduzidas nos livros A revolução das redes (Vozes, 1999), Redes de colaboração solidária (Vozes, 2002) e Como organizar redes solidárias (IFil; Fase; DP&A, 2003). Professor universitário e intelectual orgânico, Mance atuou como consultor, contratado pela UNESCO e FAO, na formulação e desenvolvimento de ações estruturantes do Programa Fome Zero, detalhadas no livro Fome Zero e Economia Solidária (IFil; Popular, 2004). Mais informações sobre o autor podem ser acessadas em seu site pessoal www.euclidesmance.net

Sobre Antonio Joaquim Severino

Professor titular aposentado na cátedra de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP, agora atuando como docente colaborador. Fez licenciatura (1962) e mestrado (1964) em Filosofia na Universidade Católica de Louvain, Bélgica. Na PUC-SP, apresentou seu doutorado, defendendo tese sobre o personalismo de Emmamuel Mounier, em 1971. Atualmente integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uninove, Universidade Nove de Julho, de São Paulo, onde lidera o Grupo de Pesquisa e Estudo em Filosofia da Educação - GRUPEFE. Seus estudos e pesquisas atuais situam-se no âmbito da filosofia e da filosofia da educação, com destaque para as questões relacionadas com a epistemologia da educação e para as temáticas concernentes à educação brasileira e ao pensamento filosófico e sua expressão nas culturas brasileira e latinoamericana.

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